A água em um contexto sócio-político: crise de oferta ou de gestão?

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A água em um contexto sócio-político: crise de oferta ou de gestão?

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A água em um contexto sócio-político:
crise de oferta ou de gestão?

As consequências de um verão atipicamente seco sobre o suprimento de água, especialmente na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), trouxeram a tona os problemas de um sistema em crise. Se, por um lado, a questão da criticidade hídrica na RMSP já havia sido diagnosticada e suas soluções, pela expansão da oferta, constavam em planos de longo prazo da macro metrópole, por outro, pouco se avançou sobre o a consecução destes planos no aumento da eficiência dos usos da água. A emergência de um cenário de ‘racionamento’, palavra evitada no meio político por conhecidas razões, fez ressurgir propostas de novas transposições de água para a RMSP, sendo uma delas objeto atual de ação do governo paulista, na bacia do rio Paraíba do Sul. Esta ação despertou reações na bacia doadora, tendo sido fortemente criticada no estado do Rio de Janeiro, em especial na região metropolitana, beneficiária de outra transposição das águas da bacia.

Tal cenário representa um importante desafio de gestão das águas, uma vez que, no sistema de dupla dominialidade, pode estar legitimada uma iniciativa de uso – e outorga – que, embora realizada em um trecho de domínio estadual, refletirá na bacia como um todo, afetando águas do domínio federal. A concertação para dar amparo moral, e justiça social, para iniciativa desta natureza deveria envolver, consequentemente, o conjunto dos estados envolvidos no âmbito da bacia hidrográfica. No entanto, a condução não tem sido nesta direção. Ao menos é o que se percebe das movimentações políticas em torno da questão, erigidas sobre uma base cega, já que sequer se deu amplo conhecimento ao projeto técnico da suposta obra. A falta de transparência com que se tem tratado a questão, seja no nível estadual, seja no nível federal, demonstra uma fragilidade do sistema de gestão de recursos hídricos que precisa ser melhor diagnosticada e resolvida. A ausência de manifestação dos Comitês de Bacia envolvidos e do Conselho Estadual de Recursos Hídricos de São Paulo pode ser ilustrativo do esvaziamento político destes fóruns, destituídos de poder decisório sobre aspectos relevantes.

No que concerne à transposição em si, para qualquer tomada de decisão, há que se considerar a realização de uma análise abrangente, que inclua os usos múltiplos na bacia doadora e seus conflitos e compartilhamentos, além de aspectos como a produtividade da água, os cenários críticos de estresse hídrico sazonal, as demandas ecológicas, e até mesmo as possibilidades de acirramento dos problemas decorrentes de um eventual câmbio climático. Aliás, é importante ressaltar que, no caso, as características climáticas das regiões doadoras e receptoras são similares, ou seja, os momentos críticos das duas, em relação aos recursos hídricos, são coincidentes.

Há ainda outros aspectos relevantes a considerar. Um dos mais proeminentes está associado à baixa eficiência dos usos da água, seja na RMSP, na RMRJ, ou em qualquer lugar no Brasil. O volume de água desperdiçado nos sistemas de distribuição atinge valores acima de 40% do total da água captada (este número varia em função do que se considera como perda física). Como discutir transposição de águas num contexto de criticidade para ambas as bacias, sabendo que mais de 1/3 da água eventualmente retirada da bacia doadora será desperdiçada no destino, antes mesmo de chegar ao usuário final? Outro aspecto da baixa eficiência está relacionado ao uso final. No caso do uso doméstico, sobre a água que chega às residências há ainda uma grande parcela de desperdício, seja por hábitos perdulários de consumo, seja pela baixa eficiência dos equipamentos de utilização (torneiras, registros, bacias sanitárias, etc.). As instalações públicas, de responsabilidade dos poderes executivos em suas diversas instâncias, são, de longe, as mais perdulárias no que concerne aos usos da água.

Diante do exposto, cabe ressaltar a oportunidade que a crise revela. Situações críticas como esta vivenciada pela RMSP devem se repetir em outros contextos em boa parte das maiores cidades brasileiras, em função da expansão das demandas em ambientes de oferta limitada, quadro que pode ser agravado por cenários de incerteza climática. As soluções, portanto, não devem se resumir à expansão da oferta e ou à implantação de infraestrutura de armazenamento de água, necessárias, porém não suficientes para a completa adequação dos sistemas urbanos. Há que se investir sobremaneira na mudança de padrões de consumo e redução de perdas, muito além da conta rasa praticada pelas concessionárias de abastecimento. Neste cômputo, é preciso interiorizar no cálculo do investimento para redução dos índices de perda, as externalidades da crise. Afinal, quanto custa para a sociedade a perda de cada litro de água em uma situação crítica? Se o ‘racionamento’ de água não é desejado, a racionalização do uso é imperativa!

A situação atual nos dá elementos para aprimorar nosso sistema de gestão das águas, especialmente sobre questões de transparência, participação e integridade. Neste sentido, vale trazer à tona uma das assertivas que o fórum técnico-científico da Associação Brasileira de Recursos Hídricos já preconizava, em 1987, na Carta de Salvador: “Nos processos decisórios de gestão de recursos hídricos, é importante a participação das comunidades envolvidas, de forma a viabilizar as ações necessárias e assegurar sua agilidade e continuidade.”. Não se pode aceitar que, ao nos aproximar dos 20 anos de implantação das políticas de gestão das águas, ainda tenhamos índices de transparência tão baixos em processos fundamentais. Esta obscuridade do sistema, especialmente quando envolve decisões importantes para a sociedade, é substrato para desvios de integridade e deve ser combatida.

Por fim, cabe o resgate de outra assertiva da comunidade técnico-científica de recursos hídricos, erigida em 2009, na Carta de Campo Grande: “(...) A resposta a todos estes desafios deve ser sustentável, sendo este conceito de sustentabilidade uma retórica recorrente na maioria absoluta dos discursos das últimas duas décadas.”

É preciso transformar a retórica da sustentabilidade em realidade, tarefa difícil nos dias atuais e, mais ainda, em período político-eleitoral. No entanto, a sociedade clama e o meio técnico-científico não pode se furtar deste desafio!


São José dos Campos, 22 de maio de 2014
II Simpósio de Recursos Hídricos da Bacia do Rio Paraíba do Sul




 
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