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Retrocesso à vista

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Retrocesso à vista

Tomei conhecimento, estarrecido, de que o serviço técnico do Condephaat (órgão responsável pela preservação do patrimônio histórico e artístico da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo) elaborou um lamentável parecer a ser analisado por seu conselho propondo o arquivamento da proposta de tombamento da serra da Mantiqueira.

Estarrecido porque, há pouco tempo, esse era um dos raros setores do governo que ainda apresentava, se não criatividade, pelo menos resistência ao retrocesso. Lamentável porque não faz nenhum sentido uma opinião técnica tão contrária ao interesse público. Considerar que a Mantiqueira não deva ser objeto de estudo como patrimônio do Estado é negar a importância desse fenômeno natural dos mais expressivos do planeta. Essa serra abriga o ponto mais elevado do Estado. É o acidente geográfico mais representativo da separação da América do Sul da África.

Estudos recentes da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) em parceria com a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) –os mais profundos e precisos já realizados no país– indicaram como prioridade a proteção desse corredor para garantir a sobrevivência de inúmeras espécies ameaçadas de extinção, muitas delas que só aí existem.

A União Internacional de Conservação da Natureza, a mais distinguida organização a tratar da questão, considera entre as dez principais áreas de importância para a proteção da biodiversidade a serra da Mantiqueira, que, ademais, é fenômeno marcante na paisagem e na história de São Paulo.

A propósito, o tombamento da serra do Mar pelo Condephaat no governo Montoro, em 1985, tornou-se a base de uma importantíssima reserva da biosfera da Unesco. Em consequência, o Paraná tombou a porção da serra do Mar em seu território em 1986, de modo que hoje temos o tombamento da mata atlântica da Bahia ao Rio Grande do Sul.

Como resultado, o vale do rio Ribeira de Iguape é a única área paulista até hoje reconhecida como patrimônio mundial. Hoje, só a ação enérgica do Condephaat tem impedido a construção de aterros sanitários e outras indesejáveis dentro de parques e áreas de proteção ambiental na serra do Mar.

Por que, então, haveríamos de privar a Mantiqueira de proteção semelhante, justo a serra que abriga os remanescentes florestais de araucárias e as derradeiras nascentes não poluídas desse reino das águas claras? Como dizer tecnicamente que a Mantiqueira não tem importância natural, paisagística, histórica?

A que ponto chegamos! E pensar que os senhores governador do Estado e seu festejado secretário da Cultura têm origem nesse Vale do Paraíba que a sombra da Mantiqueira agasalha. A mais alta ciência aponta para a necessidade urgente de ação que proteja a Mantiqueira, e o órgão técnico do Condephaat nada tem a dizer sobre isso?

A quem pode servir esse arquivamento? Às mineradoras que a vem degradando em aceleração crescente? À especulação imobiliária que avassala seus valiosos santuários naturais, com loteamentos comerciais? Olho vivo é o que recomendo.

MODESTO CARVALHOSA, 81, advogado, foi presidente do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) no governo Franco Montoro e conselheiro do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional) de 1986 a 1996

Fonte: Jornal Folha de São Paulo

 
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